Escrever para existir

Ou como lidar com a compulsão alimentar

Júlia Meirelles
5 min readJul 14, 2021

O primeiro texto que escrevi sobre compulsão rendeu muita conversa por aqui. Conheci muitas pessoas através do meu relato e pude ouvir histórias muito parecidas com a minha. Mas ler esse texto nos últimos anos me dava um desânimo imenso, porque me sentia uma farsa: quem sou eu pra falar sobre um transtorno que eu ainda enfrento?

Hoje, no meio do dia, entendi que é JUSTAMENTE por ainda enfrentá-lo é que eu tenho domínio sobre o que ter compulsão significa na minha vida. É uma luta eterna. Diária. Um dia após o outro. Um passo de cada vez. E sinto que escrever sobre isso continua me curando e me ajudando a atravessar o processo.

De 2014 até aqui passei por um assédio sexual que fodeu minha autoestima, aceitei uma proposta de trabalho em Portugal (e fui demitida 1 mês depois de ter voltado pra lá com TODA a minha mudança), voltei pro Brasil 2 anos e meio depois, me divorciei, passei a morar sozinha num quarto de 15 m², mudei pra um apartamento maior na companhia do meu cachorro Paçoca e perdi minha mãe num infarto fulminante que, por ironia do destino, morreu enquanto cozinhava.

Daqui 1 mês vai fazer 1 ano que ela morreu. E uma parte de mim foi embora junto. E bateu desespero. E muito medo. E eu entrei em depressão: vê-la morta no chão da cozinha foi demais, depois de um ano tão desgastante emocionalmente.

Segurei o que pude durante muito tempo. Mas desabei. E desabei bonito. De Dezembro pra cá, passei pela pior fase da depressão e me custava MUITO acordar.

Não se iludam pelo sorriso: a depressão pega qualquer um. É um grito desesperado, um pedido de ajuda silencioso, uma apatia pela vida e pelas pessoas. Sei que todo mundo durante esse período pandêmico teve seus momentos, mas a depressão é muito mais do que um momento. É uma nuvem escura, um dementador que suga sua energia e te abandona murcha e sem vida no chão.

Minha mãe morreu por não se enxergar. Em todos os aspectos. Inclusive no mental. Ela era melancólica e desconfio que também sofria de depressão — a aposentadoria da escola, no caso dela, foi um gatilho pra essa tristeza profunda. Mas ela não se enxergava. E dizia que “não era louca” pra precisar de ajuda psicológica.

Ela também tinha compulsão. Passava as noites tendo crises quase que diárias, comendo escondido no banheiro, escondendo chocolate na gaveta de calcinhas. Na época eu achava graça, mas hoje eu entendo de onde surgiu a minha relação transtornada com a comida.

A compulsão e a dificuldade de enxergá-la como um problema foram um dos fatores que tiraram a minha mãe de mim. Cedo demais, com 71 anos. Eu nem pude vê-la como avó do meu possível e futuro filho. Eu a vi sendo levada por 4 homens, naqueles gavetões de metal, todos suados levando seu corpo com dificuldade pela rua. Eu a vi sendo velada dentro de um caixão “especial” pra gente gorda e com isso me levaram mais R$1.000,00. Ela não era especial por ser gorda. Mas era especial por ser e continuar sendo minha mãe.

Eu me vi naquele chão. Naquele corpo. Naquela situação. Eu, que sou tão parecida com ela, me enxerguei naquela cena. Me enxergo, na verdade. A cola que nos une é mais do que a aparência física: hoje eu entendo que, se continuar como estou, terei o mesmo fim.

Não é fácil lutar contra a compulsão. Não é um caminho linear, não é confortável, não é bonito. Lidar com a compulsão é escancarar seus medos, seus traumas, sua história. É repassar a sua vida com lupa, pra entender a causa e a consequência. Custa dinheiro, tempo, paciência e muita persistência.

Hoje me custa tudo isso mais o medo paralisante de enxergar o que todas essas “feridas de guerra” me trouxeram: 12 quilos a mais. Em 6 meses. Em cima de um corpo que já lutava contra o sobrepeso há anos. Para quem eu conto a verdade, ela sempre vem acompanhada de um “nossa, não parece”; mas é exatamente aí que mora o perigo: um corpo gordo É um corpo gordo. não existe escala de gordo; ou é gordo ou obeso.

Eu morro de medo. E tenho que tomar muito cuidado pra não entrar numa crise de compulsão JUSTAMENTE pelo medo. É irônico? Pra caralho. Mas quem disse que a vida e os transtornos alimentares seguem uma fórmula pré-definida?

Não sei sentir, porque aprendi desde pequena que sinto demais. Sensível demais, empática demais, amiga demais, se entrega demais, passional demais, dramática demais. Tudo em mim é muito.

Aprendi a engolir o choro enquanto enfio a 4ª fatia de pizza na boca. Não é assim que se cala? Aprendi a “não ser passional demais” misturando cerveja com tarja preta e curtindo o efeito. Aprendi a lidar com a solidão comprando Farinha Láctea, chocolate e pão de queijo no mercado que fica em frente a minha casa. E comendo tudo em menos de 1 hora.

Aprendi a me punir por ser demais. Aprendi a me confortar depois de permitir mais uma relação abusiva, mais um parceiro sexual medíocre(que eu nem queria tanto assim), mais uma pessoa que entra na minha casa, faz bagunça e vai embora. Aprendi a estourar cartão de crédito e cheque especial acreditando que mais um livro, mais um disco, mais um caderno, vão me deixar feliz. A compulsão navega entre áreas: comida, compra, bebida e sexo. E nesses últimos meses eu conheci muito bem todas elas.

Mas cheguei no famoso fundo do poço. Quer dizer, lá estive até agora. Com a bochecha no chão úmido e pegajoso do poço. Olhando pra parede escura e cheia de musgo, ensaiando levantar. Mas percebi que não dá pra construir uma escada feita de comida, sexo mal-feito, relações transtornadas e livros. Quer dizer, com livros, até que dá.

A escada que vai me tirar desse lugar é falar. É me conectar com quem está nesse caminho. É BERRAR. Escrever, falar, correr, abraçar, andar, ouvir. A cura está na ação. No movimento. Tirar da cabeça e trazer pra fora. Parir a sombra que me persegue, a culpa de ser quem eu sou, o medo da rejeição, do abandono, da solidão.

Se você chegou até aqui, muito obrigada. A conclusão não existe. Porque a vida é, continua sendo, é verbo em ação contínua. Sem narrativa do super herói, nem conto de superação: sou uma mulher de 31 anos, divorciada, atravessando a vida sem curtir a jornada. Escorpiana. Que gosta de morrer e renascer quantas vezes forem necessárias.

No meu mapa astral, deu que a minha missão de vida é ajudar pessoas de maneira inovadora. Espero que esse seja o primeiro passo.

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